O que pesquisamos?
Luis Otávio Burnier, o fundador do LUME encantado em 1995, sempre nos contava uma história. Em realidade era mais a história de uma percepção. Dizia-nos em manhãs de trabalho e reflexão - após muitos pingos de suor que lavavam a sala vede do LUME - que quando via seu mestre Etienne Decroux em trabalho parecia-lhe que ele havia desenvolvido seu léxico expressivo tão complexo e completo para domar um “leão interno”. Tinha a impressão que Decroux utilizava sua tão geométrica e potente técnica como uma espécie de laço de corda ou chicote de domador para dominar essa força extraordinária que parecia “emanar” de Decroux e que Luís Otávio chamava – metaforicamente – de “leão”. Muitas vezes ao acompanhar alunos de Decroux – dizia ele - percebia até mesmo uma maior precisão de movimentos no espaço, um maior domínio técnico-geométrico-corporal - afinal Decroux já estava com uma idade avançada em comparação com o vigor de seus jovens alunos - mas o “leão” não estava lá. Não sentia o “leão”, dizia ele.
A pergunta que ele formulou a seguir dessa percepção fez nascer o LUME: seria possível trabalhar esse “leão” no atuador (ator, dançarino, performador) sem a necessidade de apreender uma técnica codificada formalizada no tempo-espaço a priori? Em outras palavras: seria possível trabalhar essa força (leão) desvinculada de uma pedagogia técnica estruturada como o Balé Clássico, o Kabuki, o Katakali, a Mímica Decroux (somente para citar algumas)? O LUME nasce para buscar experimentar essa questão - e sua existência, desde 1985 até hoje – continua ser a mesma busca de vivências práticas e teóricas a esse mesmo questionamento – hoje espraiado em várias linhas de pesquisa e investigação singulares e/ou coletivas.
Claro que o LUME não chegou a (e acredito nunca chegará!) a respostas definitivas sobre essa questão, mas podemos apontar, mesmo que com extremo cuidado de não generalização, algumas consequências da investigação e pesquisa que se fazem claras hoje dentro do bojo específico e singular das pesquisas do Núcleo.
Iniciemos pelos planos de fundo que seriam os pilares de fundação de pesquisa:
● PILAR UM - Trabalhar esse “leão” desvinculado de uma pedagogia técnica codificada significa que o LUME busca trabalhar sobre uma força e não sobre um elemento atual e tecnificável. A definição de força em física clássica é aquilo que pode alterar o estado de um corpo qualquer ou de deformá-lo e ela - a força - somente pode ser detectada pelo seu efeito na relação entre corpos. A força, por definição, é um elemento invisível e relacional e que afeta os corpos/elementos nessa relação. Podemos dizer, então, que esse “leão” percebido por Burnier afetava-o. Esse “leão” possivelmente não simplesmente emanava de Decroux, mas fazia movimentar os corpos Burnier-Decroux em afetos potentes. Esse “leão”, portanto, é uma força e não um elemento concreto, inteligível, visível, sintetizado pela consciência, mas um elemento afetivo, relacional, invisível que altera o estado dos corpos e somente é detectado por seu efeito neles.
● PILAR DOIS - Sendo esse “leão” uma força invisível e relacional ele não pode ser trabalhado de forma direta, objetiva, concreta e consciente, mas deve ser composto, gerado, criado nos meios, interstícios, poros, fissuras e buracos criados nos, com e por elementos concretos. A hipótese inicial que perdura até hoje nos trabalhos do LUME é a de que o corpo é esse elemento concreto. Não somente o corpo visto em seu aspecto físico, muscular, ósseo ou nervoso, mas principalmente o corpo visto como potencialização e intensificação dessa força virtual. O corpo passa então a ser uma espécie de âncora de experiências e composição de vivências práticas e como conjunto de práticas que intensifica essa força ao compor essa invisibilidade (imanente a ele mesmo) com sua própria atualidade. O corpo singular visto como potência-outro-corpo intensificado nele mesmo.
● PILAR TRÊS - O corpo somente pode se intensificar e se potencializar em experiências de limites. São nos agenciamento práticos vivenciados nessas zonas liminares que as fissuras, poros, buracos de potência e intensidade podem ter sua gênese. Quando o corpo é levado a experiências de fronteira dele mesmo pode desmoronar padrões conhecidos, desterritorializar-se e, a partir desse território outro, reterritorializar-se de forma potente, gerando, então, não formas físicas mecânicas, mas formas de forças (Gil, 2005). Em outras palavras: formalizações singulares de cada ator que engendram virtualidades e intensidades atualizadas em continuum no tempo-espaço cênico. Chamamos essas formas de força de MATRIZES. Poderia ser chamada também de ação física em sua mais potente complexidade.
● PILAR QUATRO - Sendo as forças relacionais - por definição - essas matrizes (formas de força, ações físicas) somente podem se compor com outras forças. As formas de força geram, portanto, zonas de jogo em que afetam e são afetadas mutuamente pelo entorno cênico, seja tempo, espaço, palco, outro ator, público e por ela mesma. Uma forma de força nunca é fixa, mas sempre recriada a cada instante em sua potência e sempre diferenciada em sua infinita zona de virtualidades. Portanto, mesmo que uma matriz tenha uma formalização codificada atualizada de forma singular, em sua virtualidade e intensidade ela, literalmente, dança e se diferencia a cada instante. Essa diferenciação tem seu território em micro-ações e micro-afetos que possibilitam a “circulação” corpórea dessas virtualidades e diferenças no desenho tempo-espacial da própria matriz, fazendo com que ela se recrie nessa zona virtual. O corpo-em-arte como potência de diferenciação infinita em sua zona de potência. E como composição de forças – ela, a matriz – deve, então, deixar-se afetar de forma receptiva e atuar com esse afeto numa atualização-em-ação, mas não numa relação simples de causa-efeito afeto-ação, mas em uma complexa RECEPTIVATIVIDADE corpórea sempre em seu limite.
Desses pilares podemos inferir intensificações:
● INTENSIFICAÇÃO UM - O ator não apreende uma técnica codificada a priori, mas deve se permitir um espaço-tempo para realizar experiências de limites para uma possível desestruturação de seus padrões e a intensificação de seu corpo – podemos chamar isso de treinamento em sua forma mais ampliada - gerando formas de força (matrizes) que em seu conjunto e em recriação constante passa a ser sua técnica singular de atuação. No LUME essa técnica singularizada pode ser chamada de dança pessoal.
● INTENSIFICAÇÃO DOIS - O foco de suas experiências deve estar voltado para as micro-sensações, micro-afetos. Sua potência deve estar localizada, territorializada em sua capacidade de ser afetado, ou seja, em sua capacidade de deixar-se afetar pelo espaço, tempo, outro. Gerar poros de entrada em seu corpo para que esses afetos sejam seu material de trabalho primeiro. O ator, portanto, não é um fazedor profissional de ações pois esse não é seu objetivo primeiro (apreender técnicas codificadas), mas é um atleta afetivo (Artaud, 1999). Aquele atleta que se deixa afetar, que se territorializa em seu limite de sensação e a recompõe. E então, com essa recomposição da sensação age, atua com e em formas de força deixando-se afetar por elas mesmas. O ator é um profissional do afeto que engendra a ação e não um profissional da ação precisa e formalizada no tempo-espaço para gerar afeto no outro. O ator como eterno improvisador na zona de virtualidades que se deixa afetar e assim afeta o outro. Um atleta afetivo da sensação. Um atleta de um território paradoxal receptivativo.
● INTENSIFICAÇÃO TRÊS - Essa receptivatidade não é sintetizada pela consciência. Essa zona virtual está em um pensamento do corpo, ou uma consciência do corpo que vive no limite consciência-inconsciência. Não será jamais possível sintetizar, inferir, deduzir, organizar, classificar nessa zona receptivativa. Ela é uma zona de fluxo constante, de abertura de fluxo e intensidades que está em um limite pré-consciente, mas completamente imanente ao corpo. Essa inconsciência que falamos aqui não é uma essência interna nem mesmo é uma supra-consciência ou uma transcendência cósmica, nem mesmo o inconsciente reprimido da psicanálise, mas é uma zona de produção (Deleuze, 2004) uma composição das intensificações da própria atualidade singular do corpo próprio, de seu desterritório e reterritório outro. A consciência dá somente o ponto de entrada para essa zona outra (zona de turbulência); ela propõe o início da experiência e acompanha atenta o fluxo que se desenrola na intensidade e na potência recomposta do corpo. A consciência do atuante sintetiza a porta de entrada para a zona de virtualidades. Ela “aprende” a abrir a porta e deixar o fluxo sair-entrar. Não é, também, uma zona de transe, mas de um fluxo liminar de uma consciência-inconsciente. Em últimas palavras: a consciência deve abrir as portas para experiências de uma consciência-inconsciente (Gil, 2005).
Portanto, O LUME nasce em 1985 com esta problemática e a persegue até os dias de hoje. O mais iimportante dessa questão é que, seja qual for o nome que se dê a este “leão”, estaremos dizendo de algo impalpável, imaterial, portanto nada concreto, objetivo ou científico stricto sensu. No máximo podemos usar uma definição paradoxal para esse “leão”: uma espécie de concretude abstrata. Estamos falando, no limite, de uma força. Burnier criou um Núcleo de Pesquisas na Universidade Estadual de Campinas para pesquisar uma força, que na definição em Física Clássica, é algo que se efetiva na relação entre dois ou mais corpos e só pode ser mensurada no efeito que causa neles.
Em última instância, o LUME nasce para pesquisar o que acontece entre os corpos, na relação entre-corpos. Pesquisamos maneiras de inventar relações, modos de convite à relações qualitativamente potentes. Convites e modos relacionais mediados pela poética teatral.