Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da Unicamp

A fala que a personagem “Margarida” improvisa no “Mixórdia em Marcha-Ré Menor”, a única e breve manifestação linguageira desse espetáculo, não antecipa e nem explica uma ou várias histórias que o grupo estaria alí reconstruindo: suas frases são como os quadros do espetáculo: combináveis e recombináveis ao sabor daquilo que marca a dimensão presente do tempo, esse lirismo gestual e sonoro que os palhaços e palhaças do “Mixórdia” gestualizam e sonorizam com suas extravagantes ou delicadas composições capazes de renovar minha sensibilidade ao cômico. Também aqui, devo dizer, não é bem o dia-a-dia que estaria se mostrando ao desviar-se por um atalho de comicidade. Com efeito, as cenas já encenam um cotidiano 3 transfigurado nas linhas de força atualizadas por essa multiplicidade de clowns, linhas que tecem as surpresas, encontros e desencontros, e que levam o espetáculo a sustentar-se em seu auto-subsistente regime de arte. Mesmo quando, como espectador, noto as inspirações oriundas de Chaplin, Buster Keaton e outros inesquecíveis recriadores do riso, mesmo nesses casos de influência manifesta e assumida pelo grupo de atores, a rede-em-mosaico dos quadros do “Mixórdia”, seja pelo som ou pelo silêncio, enreda-me em seu próprio modo palhaço de transcodificar as linhas e quebra-linhas que me levam a sorrir. É sem referência ao exterior, é coisa da imediatidade afetiva isso que me assalta como gargalhada sacudida; ou que põe em meus olhos um sorriso envolto em lirismo, enlevado, como quando “Titica” conduz meu olhar ao passeio-melodia do seu leve giro com a sombrinha sem pano, de varetas douradas, trazendo-me novamente a sensação-certeza do quanto desejo e arte são capazes de transgredir a funcionalidade imediata dos objetos e mesmo das relações inter-humanas. O estado de graça talvez seja isso: a agradável sensação de que se pode mudar a vida num lance de alegria. Talvez seja possível dizer, de modo geral, que a ágil mobilidade dos quadros do “Mixórdia” traça amplos esboços de relações humanas, expondo-as justamente como múltiplos aspectos de um caleidoscópio de alegrias.

Luis Orlandi

Assista ao espetáculo na íntegra (uma das versões)