Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da Unicamp

O que é que se sente? É como um tremor de Terra!

Livre Adaptação do Universo de Gabriel García Márquez e das Vozes da Amazônia

Esta encenação corresponde a uma leitura da especialista em Butoh Anzu Furukawa, do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Não pense que ela imaginava encenar o livro todo, tão longo, com tantas aventuras e cenas. Seria impossível. Macondo, onde vive a família Buendía, é a cidade dos espelhos. Os que vivem em Macondo se vêem projetados nestes espelhos e só enxergam, no fim das contas, a si mesmos. Não estabelecem relações verdadeiras com o outro (salvo Úrsula), só as eróticas, ou aquelas movidas por interesses inconfessáveis, que incluem o poder. Eles giram em falso, em torno de si mesmos. Então, Anzu Furukawa decidiu radicalizar, como radicalizavam as personagens. Construiu o seu poema da fugacidade a partir da ampliação de poucos momentos isolados, como se os visse num microscópio muito potente, que amplia muitas vezes aquilo que é mínimo. Assim ela revelaria que “o passado é mentira, que a memória não tem caminho de volta, que toda antiga primavera é irrecuperável e que o mais tenaz e desatinado amor é de qualquer maneira uma verdade efêmera”.

Profa.Dra. Suzi Frankl Sperber - Coordenadora do LUME

Sinto-me feliz em ter a melhor obra de Márquez representada pelos atores do LUME. A obra Cem Anos de Solidão já é bem conhecida através de suas traduções em mais de vinte idiomas em todo o mundo e famosa pelo seu “realismo mágico”. No romance existe uma passagem com o intuito de não perder este mundo. As pessoas enlouquecem, colocando placas de nomes em todos os utensílios e objetos de uso cotidiano. Reconhecemos, aqui, o mito em que o mundo passa a existir a partir do momento em que Deus começa a dar nome às coisas. Mas ao mesmo tempo, algo mais se revela : nossa insegurança genética em usar esses mesmos nomes. Por exemplo : “Eu, Tarzan, você, Jane” poderia ser “você, eu, Tarzan, Jane” ou “Coca, Cola, Mac, Donald”, ou ...

Sendo assim, existe à nossa frente um rio profundo preenchido de silêncio.

Cem anos não seriam suficientes para atravessar este grande rio. Mas os mergulhadores do LUME, que chegam à tona, vindos, depois de um longo período, do fundo dos grandes rios Negro, Solimões e Amazonas, precisam, agora, de muito fôlego. Neste momento, essa tomada de fôlego torna-se uma Ópera. Márquez descreveu “Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite”. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras. Mas essa mesma realidade haveria de escapulir, sem remédio, quando Macondo esquecesse o significado dessas palavras escritas.

No início do nosso trabalho, eu pedi a todos os atores do LUME que se tornassem os habitantes de Macondo e que esquecessem o que “VACA” significa, o que “AFASTEM” significa, o que “SE” significa, o que “QUE” significa, o que “A VIDA” significa, o que “É” significa, o que “CURTA” significa. Isso porque eu quis realmente saber que mundo era aquele de Macondo. Gostaria de morar no mundo de “Cem Anos de Solidão”. A partir do momento em que temos um corpo, não há nada a temer, e então nossa grande aventura começou. Quase três meses se passaram desde o nosso primeiro dia de trabalho e agora eu posso dizer, citando Márquez “Era isto, eu sabia que ia acontecer!”

O LUME já possui um grande dicionário de mímesis de pessoas idosas, incluindo pessoas com mais de cem anos de idade, pesquisadas desde que o nosso Luís Otávio ainda estava neste mundo, e agora ampliada com esta última viagem a Amazônia. O grande prazer era o fato de que eu não trabalharia com os atores do LUME e sim com essas pessoas provenientes da Amazônia e de outras regiões desse grande país.

Nosso espetáculo “Afastem-se Vacas que a Vida é Curta” não pretende seguir a ordem original da história de Márquez, mas apresentará o seu coração.

O que é o tempo?

Nos vemos no teatro Luís Otávio Burnier.

Anzu Furukawa (ou em português Damasco Rio Velho)

Assista ao espetáculo no íntegra

Curiosidades e Histórias

Em junho de 1997 retornávamos à casa do Lume com muitas histórias dos 40 dias passados na Amazônia. Através da dança de nossos corpos-vozes-em-ação, um tanto de inglês macarrônico e mais uma porção de interpretação português-japonês feita por Alice K., contamos para Anzu Furukawa sobre as belezas do que vimos, como, por exemplo, o encontro das águas do Rio Solimões e do Rio Negro. Anzu Furukawa foi uma diretora, coreógrafa e bailarina de Butô japonesa (1952-2001) que esteve conosco por três meses para o processo de criação do espetáculo Afastem-se Vacas que a Vida é Curta. Anzu era pequena e incansável. Neste curto intervalo de tempo emagrecemos horrores e nos sentimos subitamente dançarinas e dançarinos. Literalmente na marra!
O espetáculo foi baseado em Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, mas a imagem do encontro das águas não desgrudou de Anzu e ela ainda conseguiu criar uma coreografia de 30 minutos sobre águas, encontros e desencontros. De difícil execução para nós, O Encontro das Águas não ficou a contento para estrear antes da partida de Anzu. A precisão da coreografia também contava com a dificuldade técnica da água que passava de uma atriz à outra por um “capacete” feito de silicone e colar pós-cirúrgico para cães desenvolvido às pressas por Abel Saavedra e Lily Curcio, que ainda deram conta de todos os adereços e engenhocas do Afastem-se Vacas que a Vida é Curta. A equipe emagreceu também... Anzu trouxe na bagagem levíssimos vestidos amarelos de seda que compuseram a coreografia e, com os quais, ela nos presenteou. Seis anos depois, o também diretor e bailarino de Butô japonês, Tadashi Endo, os utilizou no espetáculo Shi-Zen- 7 Cuias, recém compartilhado com vocês. Anzu Furukawa conseguiu ver a sua coreografia dançada por bailarinxs finlandeses, com xs quais trabalhou pouco depois de sua estadia no Lume.
Atuação: Alice K., Ana Cristina Colla, Ana Elvira Wuo, Carlos Simioni, Jesser de Souza, Luciene Domeniconi Crespilho, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini.